Monday, December 17, 2007

Flâneur, Deriva, Modernidade e Situações.

Walter Benjamin analisa a obra de Charles Baudelaire, para nesta tentar localizar as transformações que a modernidade gera nas cidades e consequentemente nos homens, ele se encontra com o flâneur, aquele que perambula pelas ruas, que emerge na multidão de anônimos e vivência a cidade de forma lúdica.

A modernidade trouxe consigo a ordem e moral burguesa, a forma de organização das fábricas, aplicada na vivência das pessoas, na forma como se locomovem e como agem na metrópole. Para Baudelaire neste momento, o artista deveria tornar-se um “Botânico das calçadas”, ou seja, alguém que pudesse aplicar a fisiologia nas metrópoles. Para Benjamin, Baudelaire consegue através de sua obra imergir na cidade e vivenciando de a vida nesta de forma diferenciada, ele se posiciona diante da modernidade. Ele a confronta de forma lírica quando vive o boêmio, o flâneur, o usuário de haxixe, etc. A industrialização da vida tenta também industrializar a poesia e Baudelaire desafia as regras deste jogo social.

A sociedade moderna capitalista é também a sociedade da dicotomia, público/ privado, homem/ cidadão, etc. Para o burguês a casa, o espaço privado, o espaço do homem torna-se um lugar de despolitização, onde a harmonia da decoração deve ser o lugar de refúgio das contradições e da feiúra do mundo lá fora. Mas somente para os burgueses a casa representa o domínio privado por excelência. Para as camadas mais pobres da sociedade urbanas, as moradias coletivas criam uma nova forma de experiência. O constrangimento criado pelo Estado, por considerar estas moradias coletivas lugares anti-higiênicos, faz com que os pobres moradores de cortiços, façam o uso privativo do espaço público e através das barricadas, lutem para redefinir ambos.

A partir da metade do século XIX, o planejamento urbano de paris visando reduzir estes choques e conciliar os interesses do Estado e dos grandes grupos financeiros faz com que Paris se torne uma cidade fragmentada, onde cada região era como pequenos mundos incomunicáveis. A diferenciação entre bairros ricos e pobres levou à expansão da periferia da cidade, assim como a separação entre a residência e o local de trabalho tornou necessária a criação de uma rede de transportes capaz de garantir a circulação regular entre uma zona da cidade e outra.

E é neste momento que Baudelaire nos mostra o flâneur, o vagabundo errante, sobrepõe o ócio ao “lazer”, é aquele que se contrapõe a vida como um modo de produção serial, a esquizofrenizante divisão do espaço moderno, desafiando a divisão do trabalho. Ele não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Ele caminha no meio da multidão e o efeito narcotizante que esta exerce sobre flâneur, é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão.

Na década de 50 do século XX, um grupo de intelectuais, artistas e agitadores franceses, conhecidos pelo nome de Internacional Situacionista liderados pelo “doutor em nada” Guy-Ernest Debord, descontentes com o modo de vida e de consumo da sociedade mercantil espetacular, imposta pelo capitalismo moderno, perceberam que o novo urbanismo que reconfigurou a as metrópoles francesas, haviam transformado a vida social em espetáculo, onde os agentes sociais não passavam de espectadores de suas próprias vidas. Toda a participação social havia sido destruída pelo capital e a mercadoria era o único sujeito real desta ordem. Perceberam portanto que a cidade deveria ser recriada conforme a situação gerada no momento, ou ainda, a situação construída designava um “momento da vida, construído concreta e intencionalmente para a organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de acontecimentos” (JACQUES, 2003).

Criaram, portanto a técnica ou o método experimental chamado de Deriva, que visa re-conhecer ou redescobrir a cidade desconstruindo as formas culturais tradicionais e impregnadas de pré-concepções, se utilizando de um caminhar sem direção ou rumo pré-definido.

“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos (...) Entre os diversos procedimentos situacionistas, a Deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio” (DEBORD, 1958).

Conforme o descrito acima, podemos encontrar semelhanças latentes entre o flânerie e a Deriva, pois ambos se contrapõem ao modo de vida hegemônica do capitalismo, a transformação do tempo-livre em tempo-lazer mediado pela mercadoria, e valorizam a criação de novos jogos, novas situações (por isso o nome situacionistas), que priorizem a participação social. Tanto o vagabundo consciente encontrado por Walter Benjamin na obra de Baudelaire, quanto o vivenciador e criador de novas situações dos situacionistas se posicionam diante da modernidade de forma crítica. E tentam através de um novo olhar em relação a cidade, agir no mundo de forma lúdica e ativa e não contemplá-lo passivamente, e para isso se faz necessário criar novos jogos.

Bibliografia.

BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo” in: Obras Escolhidas volume III. Ed. Brasiliense.

JACQUES, Berenstein Paola. Apologia da Deriva. Escritos situaconistas sobre a cidade. Ed. Casa da Palavra, rio de janeiro, 2003.

Wednesday, November 14, 2007

Vermes!

Pela terceira vez nesta semana, levantei por volta de 3 horas da manhã e não consegui mais dormir. Maldita insônia, malditos pensamentos, malditos acontecimentos que geram os pensamentos.
Fui até o banheiro, lavei o rosto e ao levantar a cabeça, deparei-me com uma imagem no espelho. Um homem por volta de seus 30 anos, com o cabelo mal cortado, barba mal feita ou melhor dizendo, não feita, olheiras e cansaço, muito cansaço. Eu...cansado!
Tentei por alguns instantes reconhecer os traços daquele homem que eu fui outrora, um olhar, um sorriso ou um sinal qualquer. Sim! Eu ainda me lembro, não faz muito tempo. Eu acreditava realmente nas pessoas, no mundo, nos projetos, em mim mesmo. Todas aquelas teorias complexas que tentavam explicar o porque agimos do modo X ou Y, resultaram apenas em uma conclusão para mim. Vermes!
Procurei, procurei...mas não encontrei nada neste sujeito que vejo no espelho. Resolvi fazer um café.
Enquanto preparava o café, percebi que já havia muito tempo que ninguém visitava esta casa, e que a muito tempo o telefone não tocava. O café ficou pronto. Sentei-me na velha poltrona vinho que sempre rangia quando eu me movimentava, dei um gole no café...forte, e encarei o telefone. Tomei coragem e disquei....
O telefone chamou uma, duas, três vezes e ela atendeu.
Desliguei!
Dei outra golada na caneca de café, dei umas voltas pela sala e pensei: "Será que nunca mais conseguirei ter contato com outros iguais a mim?". Liguei novamente.
O telefone chamou e ela atendeu com uma voz sonolenta.
-Alô...Alô quem está falando?
- Vermes!
Desliguei.
Cada vez mais a situação se tornava insustentável, ao mesmo tempo em que se tornava incompreensível para mim. Os vermes estavam por todos os cantos, todos os lados.
Sim, eu já amei! Todos os outros idiotas do departamento em que eu trabalhava, diziam que o amor era a cura. E quando vieram minha primeiras crises de insônia, aliadas aos primeiros remédios e por sua vez aos primeiros vícios e as primeiras internações, todos...sem exceção nenhuma, disseram que eu deveria amar mais. Mas entre amar e ter uma arma apontada para a cabeça, sempre preferi a segunda opção.
Aqui estou eu agora, no segundo andar de um edifício qualquer, em um apartamento apertado, numa sala suja, andando de um lado pro outro. O que há de romântico nisso?
Terminei a caneca de café.
Eram 3 horas da manhã, a cidade inteira dormia, menos eu que estou aqui andando de um lado para o outro, pensando, pensando, pensando...maldita filosofia!
O que será que ela está fazendo? E aquele beijo? Porque eu tive que ver aquele beijo?
Percebi que realmente há um descompasso entre o que pensamos e o que fazemos. Ela havia me julgado, havia dito que eu não podia tratar desta forma as pessoas que eu amo e que eu devia mudar. Mas no fundo foi ela quem mudou, era ela que não acreditava no que dizia.
Enquanto isso, eu continuo aqui desviando de balas dia após dia, não mudei sou o mesmo verme de sempre!
Mas a moral da máscara é o que impera. É a escolha mais fácil, é a que todos fazem. Mas naquele dia, a máscara caiu. E eu que não acredito em Deus, não acredito nos astros, cai junto com a máscara quando perdi a humanidade.
Mas tudo bem, ninguém precisa se preocupar com isso. Afinal de contas, não passamos de vermes!

Wednesday, July 18, 2007

Comentários sobre o texto:


As lutas sociais e a cidade – São Paulo: Passado e Presente.

Capítulo 3. – São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política.
Por: Viny Rodrigues


O texto faz uma analise histórica, política e sociológica a respeito dos conflitos urbanos ocorridos em São Paulo, no final do século XIX e inicio do século XX, mostrando o expansionismo da lógica capitalista de organização da cidade, que resultou na constituição do que hoje chamamos de periferias[1].

A cidade de São Paulo se torna o pólo da produção de mercadorias e do comércio, a partir do momento em que se inicia a transição do modelo de produção com mão de obra escrava, para o modelo de produção com mão de obra assalariada. O reflexo desta transição se deu de várias formas: econômica, político institucional, social, etc. Mas a autora faz a sua analise partindo do ponto de vista da crise do espaço urbano, mapeando desta forma a constituição de uma nova ordem social.

Na relação, escravo – proprietário, onde a dominação se dava de forma clara e os limites entre as duas classes eram muito bem definidas, o escravo era visto como propriedade do senhor dono das terras, sendo assim, este era responsável por manter a sua “máquina” de produção funcionando. Para isto, era necessário manter este corpo-máquina com uma dose mínima de alimentação, tentar livrá-los de doenças e fornecer a eles uma forma de moradia. O escravo morava na fazenda do senhor, e não se caracterizava como um indivíduo, só conseguindo alcançar este status, quando se tornava membro de um quilombo ou quando conseguia comprar sua carta de alforria.

Com a abolição, os escravos foram jogados a sua própria sorte. A partir daí, surgiu à necessidade de se utilizar mão de obra assalariada, o trabalhador livre. Mas o trabalhador livre, até então era uma minoria nas cidades, então foi preciso construir este arquétipo fisicamente e ideologicamente. Se não era mais possível – fazer trabalhar – com a força da chibata, a nova ordem deveria se encarregar de produzir este trabalhador que tivesse somente a sua força de trabalho para ser vendida. Nem o caipira (considerado preguiçoso), nem o negro ex-escravo se transformaram imediatamente neste novo trabalhado livre. Sendo assim, os fazendeiros contrataram o imigrante europeu, pois as políticas da época eram vantajosas neste sentido. O governo da província pagava as passagens destes imigrantes. Por outro lado à idéia de se utilizar mão de obra “civilizada” atraia muito os fazendeiros, pois não era possível romper repentinamente com a carga ético-política da escravidão. Neste contexto, o embate entre “barbárie versus civilização” ainda se fazia presente na elite dominante da Primeira República (1889 – 1930).

Neste contexto, pela primeira vez no Brasil, a grande maioria dos trabalhadores (agora assalariados), passa a não mais habitar a propriedade do patrão. A nova ordem social implica numa re-definição do espaço social muito bem delimitada, onde cada classe sabe onde pode e onde não pode transitar. Os trabalhadores são empurrados para as para as margens das ferrovias, onde a maioria das fábricas se concentrava, e os seus bairros eram geralmente constituídos de inúmeros cortiços, zonas pantanosas e inundáveis, quase sempre com esgoto a céu aberto em uma paisagem que se contaminava também com as chaminés das fábricas. Enquanto os patrões habitavam as colinas arborizadas, em alamedas retilíneas e palacetes bem construídos.

Uma das diferenças mais significativas nestes dois universos, era a forma como os moradores se relacionavam com o espaço público. Nas zonas pobres, a maioria dos espaços eram públicos ou semipúblicos, botequins, campos de futebol e a própria distribuição espacial dos cortiços, que geralmente eram constituídos de cômodos-leitos, banheiros e tanques de lavar roupa para o uso de todos os moradores, e um corredor ou pátio central. Por outro lado, Nas áreas ricas, os cômodos eram devidamente separados e funcionalmente organizados, não há muitas áreas de convivência coletiva e as mansões se fecham em muros e grades separam a íntima vida social. Este processo de separação e diferenciação de cada bairro faz com que estes bairros tornem-se mais do que lugares no espaço da cidade, eles assumem as características dos grupos sociais que os ocupam e se identificam com eles. É como um efeito psicogeográfico, onde as características de um lugar organizado conscientemente ou não influenciam diretamente sobre o comportamento dos indivíduos que o habitam.

Todas estas transformações visavam estabelecer uma ordem dominante no contexto urbano-social, e se esta ordem se tornasse homogênea isto de certo modo garantiria a reprodução do modelo político, social e econômico vigente. Mas a forma de organização dos bairros proletários se contrapunha diretamente a está ordem, pois produzia outras formas de sociabilidade que valorizavam muito mais o espaço público do que o espaço privado e misturavam praticadas sociais distintas com a mistura de negros e imigrantes europeus (na maioria italianos, espanhóis e portugueses). O poder urbano por sua vez tentava reprimir ou transformar tudo que se diferenciasse da ordem social vigente, a ordem da classe dominante. A homogeneidade absoluta desta ordem era favorável à manutenção deste poder dominante, portanto tudo aquilo que diferia desta era considerado desvio e transformava-se imediatamente em objeto de intervenção. Esta intervenção se dá através de um discurso que estabelece o modelo ideal de cidade e cidadão, e através de intervenções diretas na vida destes cidadãos. Faz-se presente uma construção e estigmatização de determinados grupos sociais e estes passaram a ser considerados não adequados e conseqüentemente suas ações passaram a ser reprovada e assim se dá à eficácia do discurso. Um discurso de construção da anormalidade, que se assemelha muito com as idéias do filósofo francês Michel Foucault, onde há a consolidação de uma complexa rede de instituições de controle, e de mecanismos de vigilância, de papéis e exigências sociais que para manter o bom funcionamento da ordem vigente, constrói uma figura monstro-humano ou anormal, que precisa ser devidamente encarcerada e disciplinada. Foucault em sua analise desvela a formação do conceito de anormalidade decalcado na criança, e que por isso, foi alvo da educação e da tutela do Estado. Está idéia de Foucault, reflete também em outras parcelas sociais, e como vimos acima à disputa urbana do inicio do século XX, carrega alguns de seus reflexos.

Uma das formas de se combater os cortiços, eram as chamadas “vilas higiênicas”, que eram vilas que se diferenciavam dos cortiços por conter no interior de cada unidade as áreas de cozinhar, lavar, banhar e defecar. E cada habitação possuía mais de um cômodo contendo mais separações que o cortiço.
Os habitantes das vilas, não se diferenciavam em muito dos habitantes dos cortiços, eles também eram trabalhadores das fábricas, mas a partir da construção deste novo tipo de habitação, nasce uma separação ideológica entre estes morados, os “cortiçados” e “moradores de vila”. Os cortiçados passam a ser caracterizados como “perigosos marginais”, enquanto os moradores de vila, são chamados de “pobres trabalhadores”. De um lado a miséria perigosa, baderneira, ilegal; do outro a miséria útil, explorada e permitida. As vilas eram totalmente submetidas ao tempo-trabalho, pois na maioria das vezes, eram construídas nos arredores das fábricas, portanto, a mesma disciplina da fábrica, vale para a vida privada.

A partir daí, inicia-se o processo de remodelação da cidade, onde proprietários, interessados na valorização de algumas regiões, juntamente com ações de especulação imobiliária. São construídas pontes, viadutos e praças redesenhando completamente alguns setores da cidade.

Neste embate entre as populações de cortiços, vilas, e a burguesia dos palacetes era o terreno fértil para o aparecimento das idéias anarquistas em contraposição as políticas sanitárias que visavam controlar os cortiços, contra a propriedade privada e os aluguéis, as péssimas condições de trabalho, entre outras reivindicações. Mesmo dentro dos movimentos sociais de direito a moradia e direito à cidade, existiam diferenças de idéias e métodos. Enquanto de um lado tínhamos os anarquistas, geralmente imigrantes italianos ou espanhóis, juntamente com o que a autora chama de ralé, que eram aqueles que não moravam nas vilas, em sua maioria ex-escravos que não haviam conseguido se inserir no mercado de trabalho e foram jogados a marginalidade, utilizavam-se da agitação nas ruas, que muitas vezes chegavam a picos de violência; como método reivindicatório. Dentro deste mesmo movimento haviam outros mais moderados, que haviam conseguido alguma pequena propriedade trabalhando nas fábricas, e tinham como objetivo a inserção no sistema e não a sua destruição. Muitos tinham a intenção de organizar o movimento em partidos políticos ou sindicatos.

Através deste breve comentário sobre o texto, podemos traçar a história do surgimento da periferia nas grandes metrópoles como São Paulo, principalmente porque este conflito e estas contradições sociais ainda se fazem presentes hoje. A cultura dos cortiços deixou suas marcas nas favelas, e mesmo em escala menor, os cortiços se fazem presentes nas grandes cidades. Portanto a luta pelo espaço, é mais atual do que nunca hoje.


[1] Atualmente, a idéia de periferia está diretamente ligada às favelas e conjuntos habitacionais construídos pela prefeitura ou pelo governo do Estado de São Paulo.

Wednesday, July 11, 2007

Alguns questionamentos acerca da peça "Um inimigo do povo".

Por: Viny Rodrigues

Dr. Stockmann é um médico de uma cidade provinciana, cuja maior fonte de riqueza economica são as águas usadas para banhos medicinais. Após algumas analises, Dr. Stockmann descobre que as águas estão contaminadas e que os usuários correm perigo de adoecer se continuarem banhando-se nestas águas, então o médico revela a sua descoberta para o prefeito da cidade, que é seu irmão e posteriormente a imprensa local, formada por amigos da família Stockmann também descobre a situação das águas medicinais. A única contraposição a descoberta, e ao pedido de interdição das águas por parte de Dr. Stockmann, é feita pelo prefeito da cidade que se utiliza de uma argumentação que aparentemente leva em consideração as bases economicas que sustentam a cidade, mas que na verdade, se realiza como um discurso de manutenção do poder político e do compromisso com as elites locais, estas detentoras dos direitos sob as águas.
A imprensa que a primeiramente apoiava a descoberta do Dr. Stockmann, mas por pura conveniência, pois tinha interesses políticos por trás deste apoio, tendo em vista que, grande parte dos membros do jornal eram apologistas do partido de oposição do atual prefeito; se volta contra o médico quando é feita uma aliança com o atual prefeito, onde este promete cargos públicos para os principais membros do jornal.
A partir daí é feita toda uma campanha contrária ao Dr. Stockmann, que se torna "Um inimigo do povo" e passa a ser perseguido pelos habitantes daquela cidade.
É neste campo que se dá o conflito moral e ético dos personagens, onde as contradições humanas são levadas a limites, onde há a luta de um só homem honesto detentor da verdade, contra uma sociedade corrompida, mesquinha e emburrecida pela mídia. Stockmann descobre que o homem mais forte do mundo, é aquele que esta sozinho, o que nos remete à Schopenhauer que dizia que, "quem tem de produzir o bom e o autêntico e evitar o ruim tem de desafiar o juízo das massas e de seus porta-vozes e, portanto, desprezá-los".
Óbviamente que o Dr. Stockmann está localizado na peça como "o defensor dos pobres" ou "o defensor da verdade", o que cínicamente é real. Digo cínicamente pois, devemos ressaltar que ele também é o arquétipo do sujeito burguês do século XIX. Este por sua vez, portador de uma ética individualista e que caminha a "direita" do bem coletivo, quando este significa o seu próprio bem. Stockmann seria uma espécie de Dom Quixote burguês.
Talvez nos caiba aqui alguns questionamentos, será que Stockmann realmente estava preocupado em livrar a cidade do "sepulcro envenenado" que o balneário havia se tornado? Será que ele realmente acreditava que o fechamento do estabelecimento seria o melhor para a cidade? Ou será que a posição de médico da cidade e consultor técnico da prefeitura, o colocara numa situação díficil, quando os cidadãos começassem a adoecer e descobrissem que a prefeitura da cidade tinha conhecimento da poluição das águas e mesmo assim permitiu que os banhistas continuassem utilizando o balneário? Transportando estas questões para a atualidade, podemos sintetizá-las da seguinte forma: Como o Estado pensa o bem coletivo e como os cidadãos interpretam e se opõe quando necessário, as decisões do Estado?
Outro ponto importante a ser lembrado é o papel fundamental da imprensa, na construção da verdade. Toda a manipulação midiática que transformar o quixotesco Dr. Stockmann em um inimigo do povo, nos mostra a importância destas formas de comunicação e também nos mostra que quem tem a mídia nas mãos tem o poder. Cabe aqui outra pergunta: Quem tem as mídias nas mãos hoje?
Enquanto no século XIX a informação só era possível via jornal escrito, hoje temos diversos meios de comunicação, vivemos na era da informação que por sua vez esmaga o conhecimento. É possível perceber a força midiática na sociedade moderna, quando nos deparamos com os pleitos políticos que elegem nossos "representantes", onde uma torre de babel midiática é montada e o mais importante é a propaganda, um bom político está sempre no ar, seja ja televisão, no rádio, ou na internet; está última por sua vez uma terra sem lei, já que não existe ainda legislação eleitoral específica para a utilização da internet.
Por mais que o Dr. Stockmann seja o sujeito burguês idealizado pelo não menos burguês e liberal Henrik Ibsen, ele ainda assim se opõe veementemente à verdade estabelecida de forma invertida; como diria Debord "No mundo invertido a verdade é um momento do que é falso". Ele não sucumbe nem a corrupção, e nem a pressão externa por parte de seus conterrâneos. Sem o apoio da mídia e sem poder financeiro algum ele continua lá, firme em suas convicções.
A modernidade construiu o sujeito burguês e a pós-modernidade (se é que ela existe) destruiu. Se não é mais possível encontrar a convicção de idéias dentre a burguesia pós-moderna, o que diremos então das classes menos favorecidas da sociedade que tem como prioridade a sobrevivência?
Será que alguma forma de Dr. Stockmann ainda é possível?





Wednesday, February 21, 2007

Vivendo pelo café, morrendo com estilo (Parte 2).

Ele levantou-se, foi até o balcão. Tremia. Olhou para a atendente que já lhe era familiar e disse:

- Por favor outro café!
- Claro senhor, com leite ou puro?
- Puro e pouco açucar, por favor.
- Ok, pode ficar a vontade que a garçonete já irá servir-lhe.

Ele voltou para a mesa com passos lentos, descompassados, desalinhados, torcendo para que ela tivesse saído pela porta no momento em que ele levantou, ao mesmo tempo em que torcia para que ela estivesse lá do modo como a havia deixado instantes antes de se levantar.
Chegou perto da mesa e lá estava ela, brincando com os guardanapos e os canudos.
Ele aproximou-se, parou em pé ao lado da mesa, sem olhar para os olhos dela, ela levantou a cabeça, olhou para ele e disse:

- Não vai se sentar?
- Sim, sim, estou me preparando.
- Se preparando para sentar?
- Isso.
- Deixa eu te ensinar: Primeiramente você arruma a cadeira, coloque-a em uma posição confortável, depois você vai abaixando os quadris suavemente até eles tocarem a cadeira. Pronto! Está sentado!
- Como você é engraçada. Vai fazer piada de mim agora?
- Claro que não, só estou querendo quebrar a tensão, você é sempre tão tenso e leva as coisas muito a sério.
- Você ouviu o que eu disse a pouco?
- Sim ouvi, me pareceu estranho vindo de você mas enfim...
- Enfim, o que?
- Cara, você é esquisito. Nunca sabe o que quer, não tem perspectivas, se distância de tudo e de todos, mesmo quando estávamos juntos você nunca estava lá realmente, seu mundo é a parte. Tem um puta potencial e fica ai desperdiçando com esses seus amigos bêbados, perdedores, que só te afundam cada vez mais no nada em que sua vida se transformou.
- E o que isso tem a ver com o fato de eu te amar?
- Que merda de amor é esse? Você nem sabe do que está falando, nunca acreditou no amor.
- E ainda não acredito, amor é construção social, Tristão e Isolda são uma farsa, Romeu e Julieta se resume à sexo!
- E com que moral você vem até mim e diz que me ama?

A garçonete se aproxima da mesa:

- Com licença senhor, aqui está o seu café.
- Obrigado.
- Deseja mais alguma coisa?
- Sim uma arma carregada. Ele diz.

A garçonete esboça um sorriso e se afasta.

- Porque você diz essas coisas hein?
- Só estava brincando com ela, transformando a nossa relação em algo mais íntimo. Afinal ela me serviu o café.
- Que modo estranho de se ficar íntimo das pessoas.
- Somos todos íntimos na morte.
- Nem quero ouvir o resto, deixa pra lá!
- Não vai tomar mais nada?
- Não, já estou indo embora.
- E nós?
- Querido, não existe mais nós. Acho que na verdade nunca existiu. Existe eu e você.
- O que o seu namorado faz?
- Não te interessa!
- Ele trepa bem?
- Você acha que eu vou mesmo te responder esta pergunta, ou está perguntando só para me provocar?
- Só para te provocar.
- Imaginei.
- Você não quer falar comigo, não é mesmo?
- Não é isso, é que eu não posso falar contigo, como se nada tivesse acontecido. Você fez um estrago tremendo na minha vida e nem se importou com isso, não foi fácil!
- Claro que eu me importei. Tanto me importei que fiz o que fiz.

Ele deu uma enorme golada no café, e continuou:

- Olha, não foi fácil, você sempre soube o quando eu sou ruim com as escolhas, o quanto complico as coisas simples e como sempre me fodo no fim. Nunca faria algo que te magoasse propositalmente, mas nós mentimos. Eu menti para você e você para mim, nos enfiamos em um emaranhado sem perceber e quando nós demos conta e tentamos nos soltar, era tarde demais.
- É nisso você tem razão. Mas não te dá o direito de vir até mim depois de 6 meses, dizendo que me ama.
- Veja bem, eu não sei o que é o amor. Na verdade quero se foda! Só sei que você faz falta, só constato o que é empírico, mesmo sabendo que meus sentidos podem me enganar.
É uma coisa de filha-da-puta mesmo, sabe? Quanto mais te vejo feliz, mais eu fico triste por saber que o motivo desta felicidade não está relacionado a mim. Sim, posso ser um escroto e dormir bem sabendo disso, aceito todas as minhas características humanas. Não nego nada, pois "Nada do que é humano me é estranho".
- E é desta forma que você quer que eu te ame?
- O que você espera? Viver em um mundo de ilusão, onde as pessoas são sempre boas e nada de mal acontece?
- Mas quem ama protege, não?
- Sim, eu te protejo de tudo e de todos, menos de mim mesmo.
- E você é o mal que eu mais temo. Disse ela com um tom desiludido.

Ele esbarrou na xícara e derrubou o café. Fez um sinal para a garçonete. Ela veio atendê-lo.
Ela disse sorrindo suavemente:

- Quer a arma agora senhor?
- Ainda não, mas gostaria de mais um pouco de café. Disse ele sorrindo.
- Ok!

A garçonete foi buscar mais café.

- E não é que funcionou. Disse ela.
- Sim, sempre funciona.
- Preciso ir agora, terminamos essa conversa uma outra hora.
- Acho que não!
- Porque não?!?
- A arma...
- Que brincadeira idiota!
- Pode não ser brincadeira.
- Não vivemos para isso.
- E para que vivemos?
- Para fugir disso, como no filme do Bergman.
- E vivemos para aproveitar a vida, uma hora o "aproveitar" acaba e cessamos de viver.

Ela levantou-se, vestiu a jaqueta jeans e disse:

- Vou fingir que não ouvi isso, se cuida!
- Você também.

Ele aguardou ela sair, viu-a atravessando a rua e pegando um táxi. Levantou-se, tirou uma nota de R$ 20,00 do bolso da calça, colocou-a sobre a mesa e foi embora.
A garçonete vinha com a xícara de café, ao vê-lo saindo suas pernas tremeram, tropeçou e caiu no meio da cafeteria. A xícara espatifou-se ao chão, o café caiu e sem querer ela chorou.

Wednesday, January 31, 2007

Vivendo pelo café, morrendo com estilo ( Parte 1).

Encontraram-se depois de um bom tempo sem contato algum, em um café nas redondezas da avenida paulista. Lugar onde os pós-modernos precários, artistas frustrados, pseudo-intelectuais de orelha de livro, vadios travestidos de boêmios de forma saudosista e putas, muitas putas; se escondem.
Se olharam fixamente, como se estivessem um procurando no outro o que deixaram para trás naquela noite. Ele andou ao redor dela, como um cão que avista e tenta identificar um outro ser da mesma espécie, parou em frente à ela e esboçou um sorriso. Como sempre ela foi mais rápida, sorriu primeiro e disse:

- Está orgulhoso de mim? De como eu estou superando a fase "você"?
- E porque eu deveria estar?
- É verdade, isto não deve fazer bem ao seu ego, não é mesmo?
- Pouco me importa.
- Sei...sei...E como você está?
- Vivendo num eterno final de semana.
- Isso é bom!
- Depende, depende muito.
- Depende do que oras? Final de semana, ócio, vida, você vivia fazendo apologia à isso.
- O importante não é ter vida, e sim a forma como se conduz essa vida. E você sabe como todo término de final de semana é melancólico né! Domingos a noite são sempre trágicos.

A garçonete os interrompeu perguntando sobre os pedidos. Ele pediu um café com creme e ela pediu um leite gelado com chocolate.

- Você ainda toma muito café? disse ela.
- Sim, sim. Vivendo pelo café, morrendo com estilo.
- Esse é o seu slogan? Ridículo!
- Eu sou ridículo, vivo de forma ridícula, odeio de forma ridícula e amo tudo isso mais ridículamente ainda.
- Isto é uma introdução "aquele" assunto?
- Porra nenhuma, assunto morto e enterrado.
- Afinal de contas, porque me chamou aqui então?
- Na verdade não sei, queria te ver só isso.
- Só isso?
- Você pergunta demais e vive de menos.
- O que você espera? O que você quer? Fala em viver, viver, mas não faz nada pela sua vida.
- E o seu namorado como está?
- Não muda de assunto.
- Me disseram que ele é um idiota.
- Todos os homens são idiotas pra você, exceto você mesmo, não é?
- A mais pura verdade. Narciso acha feio aquilo que não é espelho.

A garçonete os interrompeu novamente, trazendo os pedidos.

- E o seu namorado?
- Está obcecado nele hein! Essa sua velha mania de se comparar com os outros...
- Sempre no comparamos, eu, você, qualquer um. Queremos nos sobressair no meio da multidão. Olhamos os outros, observamos e vemos o quanto somos melhores e o quanto somos piores.
- Então você quer ser o melhor?
- E você não? Quero ser o melhor que eu puder ser, e sei que posso ser.
- Acho que somos todos iguais.
- Pronto! lá vem você com esse seu papo neo-humanista!
- É sério, não quero ser melhor que ninguém, quero apenas ser eu mesma.
- E você sabe quem você é?
- Tento me descobrir a cada dia.
- E se você se descobrir um lixo?
- Isso não vai acontecer.
- Como você pode ter tanta certeza?

Ela parou, deu uma golada no chocolate e disse:

- Olha, não tenho certeza de nada, mas sei que não sou um lixo!
- Você é melhor que isso né?
- Claro, claro que sim.
- Você é melhor que aquela menina sentada na mesa do canto, usando óculos vermelhos, vestido preto, sapato preto e branco e lendo a revista cultural da moda?
- Não sei, não conheço ela. Mas acredito que sejamos iguais.
- Iguais onde? Você acabou de dizer que nem a conhece. Mas a sua primeira impressão a respeito dela eu sei que não foi boa. Você sempre odiou sapatos bicolores. Você nunca usaria aquele sapato, acha brega, você não é brega, você tem estilo é diferente!
- Isso é verdade, mas não quer dizer que eu me ache melhor que ela.
- Como não, acabei de simular todo um julgamento a respeito de uma pessoa, tomando como ponto de partida o sapato que ela está usando e você concordou.
- Mas é uma questão de gosto pessoal.
- Não, não é. Para você achar ela brega, obrigatoriamente você está usando uma pessoa não-brega como referência, no caso você mesma, isso já faz de você um pouco melhor.
- Puta papo chato! Você não se contenta em simplificar as coisas né?
- Você sempre me achou chato. Disse ele.
- Pretencioso também.
- E arrogante.
- Mal educado!
- Ainda te amo!

A cidade para. Um silêncio profundo toma as ruas. O café esfria.

(Continua...)