Monday, April 10, 2006


Desde que sou capaz de pensar, que me faz feliz a canção - entre a montanha e o vale profundo - a história de duas lebres que se empanturram de grama, foram abatidas pelo caçador, e ao constatarem que ainda estavam vivas, saíram correndo. Porém, só muito mais tarde eu compreendi a lição aí contida: a razão só pode resistir no desespero e no excesso; é preciso o absurdo para não se sucumbir à loucura objetiva. Deve-se fazer como as duas lebres. Quando o tiro vem, cair fingindo de morto, juntar todas as suas forças e refletir, e, se ainda se tiver fôlego, dar o fora. A capacidade para o medo e a capacidade para a felicidade são o mesmo: a abertura ilimitada, que chega à renúncia de si, para a experiência, na qual o que sucumbe se reencontra. O que seria a felicidade que não se medisse pela incomensurável tristeza com o que existe ? Pois o curso do mundo está transtornado. Quem por precaução a ele se adapta, tornar-se por isso mesmo um participante da loucura, enquanto só o excêntrico conseguiria aguentar firme e oferecer resistência a absurdidade. Só ele seria capaz de refletir sobre o ilusório do desastre, a irrealidade do desespero, e de se conscientizar não só de que ele ainda vive, mas de que ainda há vida.