Thursday, December 14, 2006

A Mentira. A chuva de Sapos.

Os olhos cruzaram-se uma, duas, três, incontáveis vezes. Tatearam-se no espaço.
Nada muito profundo, superficialidade é a palavra. Os gestos, os cumprimentos, os toques, os medos. Uma sutileza fria, cercada de cinísmo.
Caminhou em minha direção, vestida com um véu que me impossibilitava enxergá-la na totalidade. Dizia: bem vindo ao baile de máscaras, eu serei a sua mestre de cerimônia.
E eu fingindo durante todo este tempo aceitar. Peguei uma coca-cola, dei uma longa golada e esperei pela chuva de sapos. Em vão! O máximo que recebi foi uma tentativa de ser agrádavel.
Era o último dia, talvez eu quisesse lá no fundo, acreditar que seria o dia D. Talvez eu tivesse criado uma atmosféra individual na qual eu dançava sozinho, mas insistentemente esperava por alguém. A chuva de sapos lembra?
A monotônia me consome, a rotina me consome, todos os dias tenho que escolher entre o morrer de tédio e o morrer de fome, como disse Raoul Vaneigem.
Seduzindo tudo e todos, gesticulando, sorrindo, bebendo. E eu lá, esperando o que vem depois, como um bom espectador. A passividade, o perder as rédias da própria vida, a tragédia das escolhas. Não faz sentido!
Eu observava todos os tipos ao redor, pseudo-intelectuais remanescentes de uma época da qual não vivenciaram, com aquele ar de pedantismo característico deles. Enquanto alguém soltava uma baforada de fumaça de cigarro e comentava sobre um filme iraniano qualquer, os outros discutiam se Miles Davis foi melhor na fase Bebop ou na fase Fusion, outros apenas bebiam em silêncio, e eu esperava por um sinal. A noite inteira esperando um sinal.
Eis que ela se virá pra mim e faz uma pergunta, que na verdade não signicava nada e ela já sabia a resposta. Gentilmente e sarcásticamente eu respondo. Ela faz uma piada. E assim ficamos, durante muito tempo...
Um beijo, tome cuidado, nos vemos por aí. Mentira. E nada de chuva de sapos!!!

Monday, November 27, 2006

Entrevista com a banda Deriva, Desvio ou Deturpação.


*Conte como a banda tem se sustentado com as próprias pernas. Fora da banda, cada um tem seu emprego?
R: A banda não sobrevive como banda, cada um tem sua própria"fonte de renda", trabalhando em outras coisas. A banda na verdade basicamente só consome dinheiro. Só tivemos 2 shows até agora que realmente fizeram entrar uma grana que foi utilizada pra gravação e produção da primeira fita, que nós distribuímos gratuitamente.

*Qual a principal dificuldade em ser uma banda independente?
R: A principal dificuldade é levar os instrumentos.

*O fato de estarem em sites de divulgação e relacionamentos(orkut, myspace, purevolume) tem ajudado a divulgar o trabalho da banda? Qual tem sido a reação do público, houve um aumento significativo de fãs?
R: A banda só tem o myspace que realmente foi responsável por várias pessoas conhecerem a banda e alguns contatos já aconteceram. De maneira geral achamos mais interessante a divulgação por sitepróprio de cada banda. Infelizmente o myspace acaba sendo umaforma menos pior de fazer a divulgação da banda, mas as relações do site com a Fox e o contrato sobre o direito das músicas, por exemplo, deixa a coisa toda meio estranha.

*O que vocês acham do papel que esses sites têm desenvolvido?
R: A mesma lógica coorporativa com uma imagem de facilidade e por isso todo mundo fica dependente desses grandes sites (orkut,myspace, tramavirtual, etc...). É ruim no sentido dos contratos que vc é obrigado a aceitar para fazer parte do site, mas acaba sendo atrativo pela resposta que a presença da banda no site acaba por gerar.

*Como vocês vêem a cena musical atual no Brasil?
R: "Cena" musical na verdade é algo que não existe. O que existe são relações primeiramente de amizade que se constróem por bandas que tocam junto, e que passam a marcar coisas junto por causa disso criando um espaço. Não tem nada obrigatoriamente relativa a estilo e sim a afinidades. Isso acaba por se centralizar em torno de um ou mais locais de show. Acho que cada um deve sempre tentar abrir mais espaço.

*E com relação à cena independente, tanto aqui como lá fora?
R: Lá fora não temos como falar, além dos exemplos claros de pessoas que fazem as coisas de maneira independente como a Dischord, The Ex, etc. Mas localmente está cada vez pior. Até alguns anos atrás acho que existia realmente um pensamento independente maisgeneralizado, mas cada vez mais as bandas sentem uma necessidade de se "profissionalizar" o que na verdade significa "agir como major". O que vc vê em vários selos que se dizem independentes é mentalidade de major agindo em menor escala (além é claro dapanelice). O que resta são as iniciativas das próprias bandas que resolvem não se enquadrar nesse sistema. Existe também umamentalidade que banda é mendigo: o que oferecerem em relação agravação e lançamento todo mundo vai aceitar. Algumas bandas dizem não.

*Vocês acreditam que há espaço pra todos?
R: Depende do que cada um define como espaço. Pra gente é apossibilidade de tocar e gravar as coisas, portanto a resposta é sim. Pra alguns é ficarmilionário. É relativo.

*Como vocês vêem os artistas que eram independentes e hoje estão entrando na mídia?
R: Não temos nada a ver com as escolhas dos outros.

*Qual opinião de vocês sobre as principais gravadoras e sobre os selos independentes?
R: As grandes gravadoras são o exemplo claro de como vc pode ser idiota. Sobre os selos independentes acho que ja falamos bastante na outra pergunta.

*Vocês assinariam contrato com uma gravadora que quisesse alterar e influenciar no som de vocês? E se fosse oferecido muito dinheiro?
R: Isso não acontecerá. Tem muitas outras pessoas mais dispostas,talentosas e bonitas do que nós para isso acontecer.

*Vimos através das ultimas décadas bandas que se ergueram e usaram suas músicas como forma de protesto, tanto aqui no Brasil como lá fora, esta é a proposta da banda? vocês acreditam que a música usada dessa forma pode ajudar a reverter nossa situação atual aqui no Brasil?
R: Cara... nós somos uma banda. O que uma banda quer é tocar. Transformação social é tarefa do proletariado.Isto não quer dizer que nós não nos preocupamos, mas esse não é o nosso objetivo. É difícil tentar comparar o que se fazmusicalmente hoje, com o que se fazia na década de 70 por exemplo. Na década de 70, ou o artista era revolucionário e contestador, ou era um idiota! Havia toda uma atmosféra para se ser contestador. Hoje não, nesse mundo "pós-moderno" hipercomplexo, uma bandapseudo-revolucionária-contestadora, assina contrato com a SonyMusic e faz merchandising na TV. Nós preferimos apenas ser uma banda de rock!

*Fale um pouco sobre a independência do estilo, o que vocês têm visto e achado legal, defenda seus princípios e ideais e comente a historia da banda.
R: O que temos visto e achado legal: Kaki King, outdoor da Marie,documentário do The Ex, Afro Ninja, Labirinto, Ordinaria Hit, Dirt Montana, La Revancha, Rattu Morto, B.U.S.H., M.ine, Rise from your Grave, Maqno, The Droog Organization Project, BuSScops, Cabeça de Gato, FLAMA, L'enfer, Vague, As Mercedes, Life Tropical Garden, O Cúmplice, Entorse, entre outras coisas.
Defenda seus princípios e ideais: os integrantes da banda não concordam em muitas coisas.
História da banda: Em meados de 2004 resolvemos tocar (sem Vinícius). Começamos com um cover de Fugazi, depois fizemos umas músicas. Então o Vinícius entrou e fizemos mais um monte de músicas. Começaram a rolar uns shows, gravamos uma demo e agora estamos planejando gravar um disco.

Tuesday, October 24, 2006

Uma conversa oca!

- Você está apaixonada?
- Isso lá é coisa que se pergunte?
- Qual o problema?
- Sei lá...este tipo de coisa não se diz, se sente.
- E o que você sente?
- Lá vem você de novo com essa história. É sempre assim...
- Por que falar sobre isso te incomoda tanto?
- Você é sempre tão cheio de perguntas. Você questiona demais!
- Talvez questionar seja o que te incomoda.
- Toda essa situação me incomoda.
- Mas também te deixa feliz, não?
- As vezes.
- Infelizmente não podemos mensurar a felicidade. Mas podemos compara-lá com algum sentimento inverso, incomodo. Qual deles é maior?
- Não sei, juro que não sei te responder isso.
- É difícil tomar decisões não é mesmo?
- Sim, é muito difícil, mas é necessário. Não podemos viver a vida inteira transitando pelo caminho do meio.
- E você decidiu não se apaixonar?
- Já tive outras desilusões amorosas e...
- Mas isso não tem nada a ver com amor! Estou falando de paixão, de corpo, de pele, de vida pulsante. E não amor!
- Pode ser.
- Amor é contrato, é compromisso. Paixão é esquizofrênia, é o corpo e a mente indo à lugares nos quais nós nunca teríamos coragem de ir sozinhos. Talvez seja isso que falte na vida das pessoas lá fora.

Ela se levanta nua, acende um cigarro e olha pela janela. A cidade está tranquila.

- Mas paixão dói, geralmente dói muito!
- Para mim a dor é sinônimo de aprendizado. Ostento com orgulho, cada cicatriz do meu corpo e da minha alma.
- Mas neste momento não é o que eu quero. Eu quero proteção!
- Quer ser protegida de quem, do que?
- Não sei, não sei...só me sinto fraca demais pra me apaixonar!
- Então você não está apaixonada?
- Não foi o que eu disse.
- Mas foi o que eu entendi.
- Como você é insuportável!
- Você me odeia então?
- Sim as vezes eu te odeio. Olho pra você e quero voar no seu pescoço, sufocá-lo até a morte.
- Nossa! isso é intenso. Prefiro que seja assim.
- É...pode ser!
- Tem tantas coisas que eu gostaria de te dizer, mas eu não sei como.
- Que tipo de coisas?
- Não sei ao certo. O seu orgulho me impede, me castra e te castra.
- O meu orgulho? (Ela dá uma leve risada). Agora a culpa é minha?
- Não há culpados nem vítimas nessa história.
- O que há então? Será que realmente há uma história?
- Sim, a história somos nós quem fazemos, e sempre fazemos. Consciente ou inconscientemente.
- Nossa história não tem muita substância então.
- As minhas sempre tem. Mas eu não posso ser responsável pelas suas.

Ela terminou o cigarro deitou novamente na cama e deu lhe um beijo longo e ardente.

- Me deixa dormir agora?
- Sim, mas só mais uma pergunta.
- O que?
- Quando é que você vai olhar no espelho, no fundo dos seus próprios olhos e dizer sim para si mesma?

Ela fingiu adormecer.

Saturday, September 23, 2006

Pensar sobre isso é muito díficil. Tento racionalizar, achar um respiro pra esse mar de confusões, mas nada me vem na cabeça. Preciso dormir mais, estudar mais, amar mais e me apaixonar menos.
O engraçado é que as pessoas sempre confundem o ser romântico com o ser passional, não conseguem distinguir aqueles que vivem a vida na carne, com as veias abertas e o coração pulsante, daqueles que projetam Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, entre outros personagens do imaginário romântico ocidental. A insurreição sempre começa na carne!
Olho pra essa tela do computador, a folha em branco, pensar sobre isso é difícil. Escrever então, é uma tarefa árdua. Porque a maioria das pessoas se submete a este modo de viver que já está posto, sem questioná-lo? Porque não se apaixonam pela vida, pelas pessoas, pelas conveniências de se relacionar com o outro?
Sim, relações humanas são relações de pura conveniência.
Passando por cima do significado corriqueiro da palavra "conveniência" que amedronta a maioria das pessoas, veremos que o que procuramos no outro, é sempre aquilo que não temos em nós ou estamos sempre tentando satisfazer um desejo, e precisamos do outro pois não podemos fazer isso sozinhos. Para alguns esse desejo pode ser o casamento, para outros apenas uma boa trepada, mas continuam sendo conveniências tanto um quanto o outro.

São 03:55 da madrugada de um sábado e eu estou aqui, tentando imaginar quais desejos as pessoas estão tentando satisfazer lá fora, nessa caça incessante por prazer, satisfação, aprovação, felicidade, e como recebem um punhado de mentiras em troca sem nem mesmo perceber, ou percebem e se fazem de idiotas. Eu poucas vezes troquei o prazer dos outros, pelas minhas mentiras. Talvez seja por isso que eu esteja me fodendo tanto agora.
Acabo de dar uma olhada em um texto do Renarde Freire Nobre, que fala sobre a tragédia cultural e a racionalidade no pensamento de Max Weber. Sim! Max Weber, aquele que a maioria dos alunos pseudo-marxistas de ciências socias chamam de reacionário.
Um techo desse texto me chamou muita atenção:

"(...) A parti de então pode se melhor compreender como a tragicidade da vida consiste em os homens terem que fazer escolhas e lidarem com as suas consequências, e de como tais opções excluem outras e os colocam em conflito ou luta consigo mesmos ou com os demais".

Nessa minha mistura quase esquizofrênica de idéias, tento entender qual a relação das nossas escolhas, que são sempre tão difíceis de serem feitas, e as conveniências que permeiam nossas relações. Não achei nenhuma resposta para isso. Meu cão Vader, fiel amigo sempre sentado ao meu lado nas madrugadas inquietantes, me olha como se eu estivesse louco, afinal de contas, até ele sabe que é muito difícil pensar sobre tudo isso.
04:09 da madrugada de sábado, é melhor eu tentar dormir.

Monday, September 11, 2006

Coração, Pedra e Gelo

Seus olhos cegam os meus
Que não brilham mais
Sem os teus em mim
Leva meu coração
Ele vai pesar tanto
Que você nem vai
Conseguir tirar
Ele do lugar
Se cair no chão

Quando a gente se encontrar
Se os teus olhos meus
Disfarçarem bem
Então leva meu coração
Não vou mais usar
Em nenhuma canção

Quando a gente se encontrar
Se os teus olhos meus
Disfarçarem bem
Então leva
Meu coração pedra e gelo

Monday, September 04, 2006

Oficina irritada. (Carlos Drummond de Andrade)

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

Casamento do Céu e do Inferno
No azul do céu metileno
a lua irônica
diurética
é uma gravura de sala de jantar.

Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos púberes
espantando mosquitos
de cortinados e grinaldas.

Pela escada em espiral
diz-que tem virgens tresmalhadas,
incorporadas à via-láctea,
vaga-lumeando...

Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto.

Sunday, August 20, 2006

Bate forte, bate, por toda parte.
Arde, queima, vive.
Não, não se iniba. Não tenha vergonha.
Já se esqueçeram disso, mas continue.
De o seu grito.
Não te entendem?
Você não mente?
Ou se mente, é porque sente.
Então continue batendo, queimando.
Re-inventando o novo do novo, de novo.
Tudo começa na carne.
A carne sente e sente sinceramente.
Sem tentar se conter.
É deixar correr, bater, arder.
Ninguém se lembra mais disso.
Mas eu insisto.
Continue batendo, queimando, sentindo.
Vou ficar aqui, só te ouvindo.

Friday, August 04, 2006

Fragmentos do Abecedário de Deleuze.

CP = Claire Parnet (entrevistadora)
GP = Gilles Deleuze (entrevistado)

C de Cultura

CP: Se se pode abusar um certo tempo do álcool, da cultura não se deve ir além da dose. É até um pouco repugnante. Bem, terminamos com o álcool.
GD: Puxa, estamos indo rápido!
CP: Vamos passar ao C. O C é vasto.
GD: O que é?
CP: C de Cultura.
GD: Sim, por que não?
CP: Você diz não ser culto. Diz que só lê, só vê filmes ou só olha as coisas para um saber preciso: aquele de que necessita para um trabalho definido, preciso, que está fazendo, mas, ao mesmo tempo, você vai todos os sábados a uma exposição, a um filme do grande campo cultural, tem-se a impressão de que há uma espécie de esforço para a cultura, que você sistematiza e que tem uma prática cultural, ou seja, que você sai, faz um esforço, tende a se cultivar e, entretanto, diz que não é culto. Como explica tal paradoxo? Você não é culto?
GD: Não, quando lhe digo que não me vejo, realmente, como um intelectual, não me vejo como alguém culto por uma razão simples: é que quando vejo alguém culto, fico assustado, não fico tão admirado, admiro certas coisas, outras, não, mas fico assustado. A gente nota alguém culto. É um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles sabem tudo, bem, não sei, sabem tudo, estão a par de tudo, sabem a história da Itália, da Renascença, sabem geografia do Pólo Norte, sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem falar de tudo. É abominável. Quando digo que não sou culto, nem intelectual, quero dizer algo bem fácil, é que não tenho saber de reserva. Pelo menos não tenho esse problema. Com minha morte, não se precisará procurar o que tenho para publicar, nada, pois não tenho reserva alguma. Não tenho nada, provisão alguma, nenhum saber de provisão, e tudo o que aprendo, aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueço. De modo que, se dez anos depois, sou forçado, isso me alegra, se sou forçado a me colocar em algo vizinho ou no mesmo tema, tenho de recomeçar do zero. Exceto em alguns casos raros, pois Spinoza está em meu coração, não o esqueço, é meu coração, não minha cabeça, senão... Por que não admiro essa cultura assustadora? Pessoas que falam...
CP: É erudição ou opinião sobre tudo?
GD: Não é erudição, eles sabem falar, primeiro viajaram, viajaram na História, na Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na TV, é assustador, ouvi nomes, então, como tenho muita admiração, posso dizer, gente como Umberto Eco, é prodigioso, o que quer que lhe digam, pronto, é como se apertassem em um botão, e ele sabe, além disso... Não posso dizer que invejo isso. Fico assustado, mas não invejo. O que é a cultura? Ela consiste em falar muito, não posso me impedir de... sobretudo agora que não dou mais aula, estou aposentado, falar, acho cada vez mais, falar é um pouco sujo. É um pouco sujo, a escrita é limpa. Escrever é limpo e falar é sujo. É sujo porque é fazer charme. Nunca suportei colóquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca suportei colóquios. Não viajo. Por que não? Porque... os intelectuais... eu viajaria se... enfim, não. Aliás, não viajaria, minha saúde me proíbe, mas as viagens dos intelectuais são uma palhaçada. Eles não viajam, se deslocam para falar, partem de um lugar onde falam e vão para outro para falar. E, mesmo no almoço, eles vão falar com os intelectuais do lugar. Não vão parar de falar. Não suporto falar, falar, falar, não suporto. Como me parece que a cultura está muito ligada à fala. Nesse sentido, odeio a cultura, não consigo suportá-la. CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois você foi um grande professor e a solução...
GD: É diferente.
CP: Voltaremos a isso. A letra P está ligada a seu trabalho de professor. Falaremos da sedução. Queria voltar a algo que você evitou, que é seu esforço, a disciplina que você se impõe, mesmo não precisando dela, para ver, por exemplo, nos últimos 15 dias, a exposição de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Você vai com freqüência, ou semanalmente, ver um grande filme ou uma exposição de pintura. Você não é erudito, não é culto, não tem admiração por pessoas cultas, como acaba de dizer. A que corresponde tal esforço? É prazer?
GD: Claro, é prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa história de estar à espreita. Não acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E não se têm encontros com pessoas. As pessoas acham que é com pessoas que se têm encontros. É terrível, isso faz parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colóquios, essa infâmia, mas não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro, encontro uma ária de música, uma música, assim entendo o que quer dizer um encontro. Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas próprias, com pessoas, não dá certo. Isso não é um encontro. Daí os encontros serem decepcionantes, é uma catástrofe os encontros com pessoas. Como você diz, quando vou, sábado e domingo, ao cinema, etc., não estou certo de ter um encontro, mas parto à espreita. Será que há matéria para encontro, um quadro, um filme, então é formidável. Dou um exemplo, porque, para mim, quando se faz algo, trata-se de sair e de ficar. Ficar na filosofia é também como sair da filosofia? Mas sair da filosofia não quer dizer fazer outra coisa, por isso é preciso sair permanecendo dentro. Não é fazer outra coisa, escrever um romance, primeiro eu seria incapaz, e mesmo se fosse capaz, isso não me diria nada. Quero sair da filosofia pela filosofia. É isso o que me interessa.

F de Fidelidade

CP: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem de um mistério muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F.
GD: Vamos ao F.
CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, já que há 30 anos, é amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocês se telefonam ou se vêem. É como um casal. Você é fiel às suas amizades, é fiel a Félix Guattari, a Jerôme Lindon, a Elie, a Jean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos são muito importantes para você. François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você os homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impressão de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada à amizade é correta? Ou será o contrário?
GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já que começa com F.
CP: Sim, e o A já foi preenchido.
GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer "ter coisas em comum com alguém"? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: "Passe-me o sal". Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: "O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?" Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.
CP: Decifrar signos.
GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite signos e a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm esta base: ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas... A amizade é cômica.

(O Abecedário de Deleuze está disponível na íntegra no site www.oestrangeiro.net)

Sunday, July 09, 2006

Carrego do meu lado direito a dor.
Do meu lado esquerdo carrego todo o peso do meu mundo.
Qual a distância que separa, aqueles que vencem daqueles que perdem?
Carrego as asas dos anjos e tento transpor essa distância.
Como eu poderia ter feito tudo certo?
Na verdade nada fiz.
Repito as mesmas palavras, desejo as constelações.
Mas só carrego os buracos negros em meu peito.
Procurando por algum sentido?
Não há sentido.
Eu que já não sou mais eu, não procuro mais um sentido.
Apenas carrego o sono tão desejado. Que seja eterno!

Wednesday, July 05, 2006

Comentário sobre a entrevista de Theodor W. Adorno.
Por: Marci Kühn

Não faz muito tempo Marx matou a filosofia, dizendo que estava na hora de colocá-la em prática e parar de falar e pensar. Havia chegado o limite. Há muito tempo chegou o limite, as bibliotecas estão cheias de teorias bonitas, e as nossas mentes repletas de críticas ácidas, no entanto nosso corpo continua enferrujado de ócio.
Pergunto-me qual a importância do falar em contraposição ao agir. O viés da filosofia no seu começo foi a compreensão do mundo, saber de onde viemos, para onde vamos, o que esta ao nosso redor, até o momento em que se descobriu que o que estava ao nosso redor eram homens jugando homens e todo um sistema maluco que temos de viver. A compreensão continuou a compreender todos os limiares e as intempéries do nosso sistema, do nosso mundo e ainda sim não colocamos em prática o óbvio. Aprendemos e falamos, não agimos.
Adorno nos mostrou a importância do agir. Com certeza com o afastamento das suas não-ações.
“Mas nunca eu disse algo que se dirigisse diretamente a ações práticas”.
Como podemos aplicar teorias para que as coisas sejam diferentes se nem quem as concebeu consegue lutar por esses ideais?
O agir tem tanta importância quanto o pensar, quanto o falar. É necessário exemplificar o que dizemos, mostrar que as teorias realmente funcionam e ainda, mais do que falar, o agir tem um significado muito maior do que prevemos. Dar exemplos. Se quisermos que as pessoas leiam mais, temos de ler então, comentar e conversar sobre os livros. Fazer nós mesmos para que se veja quão possível é o que dizemos.
Neste quesito o nosso querido Adorno falhou. Falhou por não demonstrar acreditar no que ele mesmo disse, por provar mais uma vez que tudo que se luta contra é mais forte.
Nega estar em uma torre de marfim intelectual que está. Quer que possamos entender que a teoria vem antes da prática. O pensamento é importante, é ele quem consegue nos fazer imaginar as conseqüências das ações e o sacrifício que se fará para alcançar algum objetivo. Mas ainda me pergunto, quando será a hora certa para que a prática seja mera reprodução da teoria? Aliás, algum dia isso será possível? Ultrapassar as incertezas, os sentidos, as vontades, as morais, a rotina, a teoria não poderá nunca fazer isso, só se pode esperar e assistir os erros que nossa mente fez e o que os outros compreenderam do que pensamos, assistir uma nova teoria nascer.
Essa relação de poder teórico nos corrompe tanto quanto a relação de poder prático que temos dos governos e pequenos poderes. Confiamos tanto em professores, teóricos, pesquisadores e cientistas que simplesmente seguimos coisas que nem eles mesmos pensariam em confiar. Os jovens, como exemplifica a entrevista com o Adorno, são os pequenos ratinhos de laboratório dos cientistas renomados, não pensamos nossas teorias, não pensamos nunca, aliás, seguimos regras de outros como loucos, nos jogamos dos abismos que nos mandam nos jogar e as poucas vezes que paramos para pensar cobramos mero apoio.
Somos cegos. Lemos e ainda sim somos cegos.
Tirando o fato da estupidez da jovialidade nos afetar, Adorno clama a reflexão como mudança do mundo. Pergunto-me, não seria reflexão uma fase para a mudança de consciência e doravante de ação? E se a sua teoria não foi feita para prática então não podemos agir esta reflexão, não podemos mudar o hábito de ver diferente, de agir diferente.
A mera reflexão, e o poder que demos para a razão, é nada mais do que um vazio intelectual.
Vamos continuar cegos e convencidos de que saber muda tudo?
“Essa pergunta me ultrapassa”. Como disse Theodor Adorno.

Monday, June 05, 2006

''A filosofia muda o mundo ao manter-se como teoria''

Entrevista de T. Adorno

Spiegel: Senhor professor, há duas semanas o mundo ainda parecia em ordem...
Adorno: Não para mim.
Spiegel: ... O senhor dizia que sua relação com os estudantes não foi afetada. Nas suas atividades de ensino haveria debates fecundos e objetivos, sem perturbações privadas. No entanto, agora o senhor suspendeu suas aulas.
Adorno: Não as suspendi por todo o semestre, só temporariamente. Em algumas semanas pretendo retomá-las. É o que todos os colegas fazem quando há invasões de salas.
Spiegel: Houve violência contra o senhor?
Adorno: Não violência física, mas fizeram tanto barulho que a aula tornou-se impraticável. Isso claramente foi planejado.
Spiegel: O senhor sente-se incomodado apenas pela forma como agora o atacam os estudantes – que antes o apoiavam – ou também o incomodam os objetivos políticos? Afinal, antes havia concordância entre o senhor e os rebeldes.
Adorno: Não é nessa dimensão que estão em jogo as divergências. Há dias declarei numa entrevista à televisão que, embora eu tivesse elaborado um modelo teórico, não poderia ter imaginado que as pessoas quisessem realizá-lo com bombas. Essa frase foi citada inúmeras vezes, mas necessita muito de interpretação.
Spiegel: Como o senhor a interpretaria hoje?
Adorno: Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quaisquer condutas ou quaisquer ações. Sou um homem teórico, que sente o pensamento teórico como extraordinariamente próximo de suas intenções artísticas. Não é agora que eu me afastei da prática, meu pensamento sempre esteve numa relação muito indireta com a prática. Talvez ele tenha tido efeitos práticos em conseqüência de alguns temas terem penetrado na cons ciência, mas nunca eu disse algo que se dirigisse diretamente a ações práticas. Desde que ocorreu em 1967 em Berlim um circo contra mim, determinados grupos de estudantes insistiram em forçar-me à solidariedade e exigiram ações práticas da minha parte. Isso eu recusei.
Spiegel: Mas a teoria crítica não quer deixar as condições tal como se encontram. Isso os estudantes esquerdistas aprenderam do senhor. Mas agora, senhor professor, dá-se a sua recusa da prática. É verdade, então, que o senhor cultiva uma ''liturgia da crítica'', como afirmou Dahrendorf?
Adorno: Em Dahrendorf ressoa uma despreocupada convicção: a de que, se apenas melhorarmos as coisas aos poucos, talvez tudo venha a melhorar. Não posso reconhecer isso como premissa. Nas organizações estudantis de esquerda, contudo, defronto-me sempre com a exigência de entregar-se, de ir junto, e a isso eu venho resistindo desde muito jovem. E nisso nada se modificou em mim. Tento exprimir aquilo que reconheço e que sinto. Mas não posso acomodá-lo ao que se fará disso e ao que disso resultará.
Spiegel: Ciência como torre de marfim, portanto?
Adorno: Não tenho temor algum da expressão torre de marfim. Essa expressão já teve dias melhores, quando Baudelaire a empregou. Contudo, já que o senhor fala de torre de marfim: creio que uma teoria é muito mais capaz de ter conseqüências práticas em virtude da sua própria objetividade do que quando se submete de antemão à prática. O relacionamento infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que a teoria se vê submetida a uma pré-censura prática. Tenta-se, por exemplo, proibir-me de exprimir coisas simples, que mostram o caráter ilusório de muitas propostas de determinados estudantes.
Spiegel: Mas é bem claro que esses estudantes têm muitos seguidores.
Adorno: Sempre volta a ocorrer que um pequeno grupo seja capaz de exercer obrigações de lealdade às quais a grande maioria dos estudantes de esquerda não conseguem se furtar. No entanto, quero repetir: eles não podem invocar modelos de ação que eu lhes tivesse dado para depois distanciar-me deles. Não faz sentido falar desses modelos.
Spiegei: Seja como for, ocorre que os estudantes referem-se, às vezes direta e outras vezes indiretamente, à sua crítica da sociedade. Sem as suas teorias talvez nem tivesse surgido o movimento de protesto estudantil.
Adorno: Isso eu não quero negar; apesar disso, tenho dificuldade para captar essa relação. Estou disposto a acreditar que a crítica à manipulação da opinião pública, que vejo como inteiramente legítima também na forma de demonstrações, não teria sido possível sem o capítulo sobre ''indústria cultural'' que Horkheimer e eu publicamos na Dialética do Iluminismo. Mas acredito que muitas vezes a relação entre teoria e prática é representada de modo demasiado sumário. Quando se ensinou e publicou durante 20 anos como eu, com essa intensidade, isso acaba mesmo passando para a consciência geral.
Spiegel: E assim também para a prática, não?
Adorno: Pode ocorrer – mas não necessariamente. Nos nossos trabalhos o valor das chamadas ações isoladas fica extremamente limitado pela ênfase na totalidade social.
Spiegel: Mas como o senhor quer modificar a totalidade social sem ações isoladas?
Adorno: Essa pergunta me ultrapassa. Diante da questão ''que fazer'' eu na realidade só consigo responder, na maioria dos casos, ''não sei''. Só posso tentar analisar de modo intransigente aquilo que é. Nisso me censuram: já que você exerce a crítica, então é também sua obrigação dizer como se deve fazer melhor as coisas. Mas é precisamente isso que eu considero um preconceito burguês. Verificou-se inúmeras vezes na história que precisamente obras que perseguiam propósitos puramente teóricos tenham modificado a consciência, e com isso também a realidade social.
Spiegel: Nos seus trabalhos o senhor distinguiu entre a teoria crítica e quaisquer outras teorias. Ela não deve ater-se à mera descrição empírica da realidade mas especificamente introduzir na reflexão a ordenação correta da sociedade.
Adorno: Neste ponto tratava-se da crítica ao positivismo. Preste atenção no que eu disse: introduzir na reflexão. Veja que nessa sentença nada me permite atrever-me a dizer como então se agirá.
Spiegel: Mas uma vez o senhor afirmou que a teoria crítica quer ''erguer a pedra sob a qual incuba o monstro''. Se agora os estudantes jogam essa pedra – isto é tão incompreensível?
Adorno: Incompreensível certamente não é. Creio que o ativismo basicamente se deve ao desespero, porque as pessoas sentem quão pouca força têm para modificar a sociedade. Mas estou igualmente convencido de que essas ações isoladas estão condenadas ao fracasso, como se viu na revolta de maio na França.
Spiegel: Se então não há sentido nas ações isoladas, ficaremos apenas com a ''impotência crítica'', da qual a organização estudantil de esquerda (SDS) o acusa?
Adorno: O poeta Grabbe tem uma sentença: ''Pois nada senão o desespero pode salvar-nos''. Isto é provocador, mas nada tem de tolo. Não vejo como condenar que se seja desesperançado, pessimista, negativo no mundo em que vivemos. Mais limitados serão aqueles que se aferram compulsivamente ao otimismo do oba-oba da ação direta, para obter alívio psicológico.
Spiegel: Seu colega Jürgen Habermas, que também é um defensor da teoria crítica, acaba de conceder, num artigo, que os estudantes mani festaram ''senso de provocação com muita fantasia'', e que conseguiram de fato mudar alguma coisa.
Adorno: Nisso eu concordaria com Habermas. Creio que a reforma universitária, da qual ainda não sabemos no que vai dar, nem sequer teria sido iniciada sem os estudantes. Creio que a atenção generalizada aos processos de emburrecimento que dominam a sociedade contemporânea jamais teria ganho forma sem o movimento estudantil. E também acredito – para citar algo bem concreto – que foi somente em conseqüência da investigação sobre a morte do estudante Benno Ohnesorg [em 1967, na repressão a uma manifestação contra o ditador persa, xá Reza Pahlevi] que essa história macabra veio a atingir a consciência pública. Com isso quero dizer que em absoluto não me fecho a conseqüências práticas, quando são transparentes para mim.
Spiegel: E quando foram transparentes para o senhor?
Adorno: Participei de manifestações contra as leis de emergência e, no caso da reforma da legislação penal, fiz o que podia. Mas é inteiramente diferente se eu faço coisas desse tipo ou se participo de uma prática realmente um tanto insana e jogo pedras contra institutos universitários.
Spiegel: Como o senhor avaliaria se uma ação faz sentido ou não?
Adorno: Em primeiro lugar, a decisão depende em grande medida da situação concreta. Depois, tenho as mais graves reservas contra qualquer uso da violência. Eu teria que renegar toda a minha vida – a experiência sob Hitler e o que observei no stalinismo – se não me recusasse a participar do eterno círculo da violência contra a violência. Só posso conceber uma prática transformadora dotada de sentido como uma prática não violenta.
Spiegel: Também sob uma ditadura fascista?
Adorno: Certamente haverá situações em que isso se apresente de outro modo. A um fascismo real só se pode reagir com violência. Nisso não sou de modo algum rígido. No entanto, nego-me a seguir aqueles que, após o assassinato de incontáveis milhões nos estados totalitários, ainda preconizem a violência. É neste limiar que se dá a separação decisiva.
Spiegel: Foi superado esse limiar quando os estudantes tentaram impedir, mediante ações de sit-in, a distribuição de jornais da cadeia [conservadora] Springer?
Adorno: Esse tipo de manifestação eu considero legítimo.
Spiegel: Foi superado esse limiar quando estudantes perturbaram a sua aula com barulho e exibições sexuais?
Adorno: Justo comigo, que sempre me voltei contra toda sorte de repressão erótica e contra tabus sexuais! Submeter-me ao ridículo e atiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abo minável. O efeito hilariante que se consegue com isso no fundo não passava da reação do burguesão, com seu riso néscio quando vê uma garota com os seios nus. Naturalmente essa imbecilidade era calculada.
Spiegel: Será que esse ato insólito pretendia confundir suas teorias?
Adorno: Parece-me que nessas ações contra mim importa menos o conteúdo das minhas aulas; tudo indica que para a ala extrema é mais importante a publicidade. Essa ala sofre do medo de cair no esquecimento. Com isso torna-se escrava da sua própria publicidade. Uma aula como a minha, que conta com uma presença de cerca de 1000 pessoas, evidentemente é um cenário maravilhoso para a propaganda ativista.
Spiegel: Pode também esse ato ser interpretado como ação da desesperança? Talvez esses estudantes se sentissem abandonados por uma teoria da qual pelo menos acreditavam que pudesse converter-se em prática modificadora da sociedade?
Adorno: Os estudantes nem tentaram discutir comigo. O que tanto dificulta meu relacionamento com os estudantes hoje é a primazia da tática. Meus amigos e eu temos a sensação de não passarmos de objetos em planos bem calculados. A idéia do direito das minorias, que afinal é cons titutivo da liberdade, não desempenha mais papel algum. As pessoas recusam-se a enxergar a objetividade da coisa.
Spiegel: E diante desses constrangimentos o senhor abre não de uma estratégia defensiva?
Adorno: Meu interesse dirige-se cada vez mais à teoria filosófica. Se eu desse conselhos práticos, como em certa medida fez Herbert Marcuse, isso seria feito à custa da minha produtividade. Pode-se dizer muito contra a divisão do trabalho, mas já Marx, que na sua juventude a atacou com a maior veemência, reconheceu mais tarde que sem ela não seria possível.
Spiegel: Então o senhor decidiu-se pela parte teórica, para os outros fica a parte prática; e o senhor já está empenhado nisso. Não seria melhor que a teoria refletisse simultaneamente a prática? E com isso também as ações presentes?
Adorno: Há situações em que eu faria isso. No momento, contudo, parece-me muito mais importante começar a refletir sobre a anatomia do ativismo.
Spiegel: De novo para a teoria, portanto?
Adorno: No momento eu atribuo à teoria uma posição superior. Já toquei – sobretudo na Dialética negativa – nessas questões muito antes de ocorrer esse conflito.
Spiegel: Na Dialética negativa encontramos a constatação re signada: ''A filosofia, que já parecera superada, mantém-se em vida porque o instante da sua realização foi perdido''. Uma filosofia como essa – externa a todos os conflitos – não se converte em ''preciosismo''? Uma pergunta que o senhor mesmo se propôs.
Adorno: Continuo a pensar que é justamente sob os constrangimentos práticos de um mundo funcionalmente pragmatizado que devemos manter a teoria. E também não é pelos eventos recentes que serei levado a desviar-me do que escrevi.
Spiegel: Até agora, como formulou seu amigo Habermas, a sua dialética abandonou-se nos ''pontos mais negros'' da resignação à ''esteira destrutiva da pulsão de morte''.
Adorno: Eu preferiria dizer que é o apego compulsivo ao positivo que provém da pulsão de morte.
Spiegel: Seria então a virtude da filosofia encarar de frente o negativo, mas não invertê-lo?
Adorno: A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou mudanças imediatas. Ela muda precisamente na medida em que permanece teoria. Penso que seria o caso de perguntar se, quando alguém pensa e escreve as coisas como eu faço, se isso não é também uma forma de opor-se. Não será também a teoria uma forma genuína da prática?
Spiegel: Não haverá situações, como por exemplo na Grécia [sob ditadura militar] em que o senhor, para além da reflexão crítica, apoiaria ações?
Adorno: É evidente que na Grécia eu admitiria toda sorte de ações. Lá reina uma situação totalmente diferente. Mas ficar em lugar seguro recomendando aos outros que façam revolução tem algo de tão ridículo que chega a ser constrangedor.
Spiegel: O senhor continua a ver, portanto, como a forma mais significativa e necessária da sua atividade na República Federal Alemã fazer progredir a análise das condições da sociedade?
Adorno: Sim, e mergulhar em fenômenos singulares muito determinados. Não me envergonho de tornar público que estou trabalhando em um grande livro de estética.

ADENDO: UMA INTERVENÇÃO DE ADORNO1
Contra as leis de emergência
Um não-jurista pode dizer algo sobre a proposta de leis de emergência na consciência de que a questão não é jurídica, mas realmente social e política. Embora outras nações tenham leis análogas, que no papel não se apresentam em nada mais humanas, a situação alemã é de tal modo diferente que disso não se pode derivar qualquer justificativa para essa proposta.
O que ocorreu no passado depõe contra o plano (...), a começar pelo Parágrafo 48 da Constituição de Weimar. Ele permitiu que a demo cracia fosse entregue às intenções autoritárias do senhor von Papen. Leis como essas abrigam, entre nós, tendências regressivas, à diferença da Suiça, por exemplo, em que a democracia penetrou na vida do povo de maneira incomparavelmente mais substancial. Ao contrário do que alguns nos atribuem, não é preciso estar carregado de histeria política para temer aquilo que aí se anuncia. Já o governo atual e seus predecessores demons traram há anos uma atitude perante a Constituição que permite esperar algo para o futuro. Por ocasião do chamado caso [da revista] Spiegel, o falecido chanceler Adenauer falava de um caso terrível de traição nacional, que nos tribunais resultou em nada. Do lado do governo houve quem tivesse o cinis mo de declarar que os órgãos de proteção do Estado não poderiam andar para cima e para baixo com a Constituição debaixo do braço. A expressão ''um pouco fora da legalidade'' foi incorporada por aquele humor popular que não se deixa fazer de criancinha.
Com uma tradição como essa, quem não desconfia de nada é porque não quer ver. As tendências restauradoras, ou como quer que as chamemos, não se tornaram mais fracas, mas, pelo contrário, fortaleceram-se. Nossa República Federal nem mesmo fez algo sério em relação ao seqüestro de pessoas perpetrado por agentes sul-coreanos. Só um otimismo extremo poderia esperar das leis de emergência outra coisa do que a continuidade dessa tendência, só porque são formuladas com tanta conside ração de direito público. A língua inglesa conhece uma expressão que fala de profecias que se cumprem a si mesmas. É o que ocorre com o estado de emergência. O apetite aumenta com o comer. Tão logo se esteja seguro de quanto se pode abranger com as leis de emergência se achará a oportunidade de pô-las em prática.
Esta é a verdadeira razão pela qual devemos protestar do modo mais incisivo contra essa situação, em que o esvaziamento da democracia, que já se encontra em curso, ainda por cima seja legalizado. Será tarde demais quando as leis permitirem deixar sem ação aquelas forças das quais se poderia esperar que impedissem no futuro o abuso: exatamente o que o abuso não permitirá acontecer. Deve-se fazer oposição no âmbito público mais amplo possível às leis de emergência, em nome da suspeita de que aqueles que as propõem tenham por elas especial simpatia. A circunstância de que a simpatia pelo estado de emergência não é casual, mas exprime uma poderosa tendência social, não deveria diminuir a oposição à proposta, e sim aumentá-la.

Notas
* ''Die Philosophie ändert, indem sie Theorie bleibt. Gespräch mit Theodor W. Adorno''. Entrevista à revista Der Spiegel, n.o 19, 1969. Tradução de Gabriel Cohn. Publicado anteriormente no Caderno ''Mais!'' da Folha de S. Paulo, 31.08.2003.
1 Na entrevista, Adorno refere-se à sua participação nos protestos contra a proposta de leis de emergência na então República Federal da Alemanha. Como exemplo da sua atuação nesse caso, e também do modo como esse intelectual supostamente alheio às questões palpáveis do dia-a-dia, na realidade não se furtava a manifestar-se em público, junta-se aqui o texto de fala sua em manifestação realizada em Frankfurt, em maio de 1968. (A propósito: no tocante à referência de Adorno ao Artigo 48 da Constituição de Weimar, que permitia ao presidente da recém-fundada República suspender garantias e instaurar o estado de emergência, encontra-se boa informação em Lua Nova, n.o 24/1991). [Nota do tradutor]

Publicado em Lua Nova no.60 São Paulo 2003.
(Comentarei sobre essa entrevista no próximo post.)

Monday, May 15, 2006

(Como estou sem tempo para elaborar novos textos, resolvi postar parte de um trabalho de sociologia que eu fiz. A discussão desse texto, gira em torno da obra de Emilé Durkheim.)

Problematizar o conceito "comunidade" no mundo contemporâneo.

Cada vez mais vemos a palavra comunidade sendo usada erroneamente para definir um grupo de pessoas agrupadas em uma relação de solidariedade negativa, ou seja, prevalece a ligação das pessoas as coisas, e o principal objetivo é conquistar um objeto externo seja ele concreto ou abstrato. No mundo atual, a busca por essa unidade se faz presente, frente a insegurança, incerteza e a falta de perspectiva gerada pelo sistema de produção capitalista e a velocidade com que as informações se movimentam. A palavra comunidade, que antes era usada para designar um grupo de pesoas que viviam em estado de "entendimento" natural, uma idéia que não foi construída, mas como diria Heidegger, "sempre esteve lá" pronta para ser usada, hoje perdeu esse significado pois esse "entendimento" é construído como uma forma de conquistar algo e questionar os valores dessa comunidade, pois com a velocidade das informações as barreiras construídas em torno dessa comunidade são rompidas, fazendo com que outras formas de organização sejam conhecidas. O ato de conhecer, contemplar e tentar controlar esse "entendimento" descaracteriza o conceito sociológico de comunidade.
A necessidade de pertencer à algum grupo, de ter uma identidade, é cada vez mais frequente em um mundo que se movimenta rapidamente (técnologia, comunicação, etc). A comunicação veloz rompe os muros dessa comunidade e faz com que os membros que pertencem a ela, se tornem seres conscientes e críticos em relaçao a mesma, descaracterizando-a. Esses membros questionando a comunidade, inventam uma nova forma de se sentirem protegidos, mas que não é mais a comunidade e sim uma identidade de grupo como disse Hobsbawn:
"Precisamente quando a comunidade entra em colapso, a identidade é inventada"
No filme "A Comunidade", podemos claramente ver que a relação dos indivíduos com essa comunidade, é uma relação construída que tem como objetivo único a conquista e divisão do dinheiro herdado por um dos membros. Eles constroem a identidade do grupo, não há um "entendimento" natural, há um objetivo de todos que é o mesmo. A solidariedade é mecânica, onde o direito repressivo reina, pois aqueles que tentam se desligar do grupo são reprimidos com a morte, os vínculos são frágeis, pois as pessoas pertencentes ao grupo não estão ligadas entre si, e sempre quando um membro do grupo se aproxima do objeto desejado (dinheiro), ele rapidamente tenta se desligar dos outros membros. O filme é um retrato das relações contemporâneas, pois as comunidade, ou melhor dizendo, os grupos sociais com uma mesma identidade, quase sempre se organizam da mesma forma que o grupo do filme, como por exemplo as associações de bairro.

Monday, April 10, 2006


Desde que sou capaz de pensar, que me faz feliz a canção - entre a montanha e o vale profundo - a história de duas lebres que se empanturram de grama, foram abatidas pelo caçador, e ao constatarem que ainda estavam vivas, saíram correndo. Porém, só muito mais tarde eu compreendi a lição aí contida: a razão só pode resistir no desespero e no excesso; é preciso o absurdo para não se sucumbir à loucura objetiva. Deve-se fazer como as duas lebres. Quando o tiro vem, cair fingindo de morto, juntar todas as suas forças e refletir, e, se ainda se tiver fôlego, dar o fora. A capacidade para o medo e a capacidade para a felicidade são o mesmo: a abertura ilimitada, que chega à renúncia de si, para a experiência, na qual o que sucumbe se reencontra. O que seria a felicidade que não se medisse pela incomensurável tristeza com o que existe ? Pois o curso do mundo está transtornado. Quem por precaução a ele se adapta, tornar-se por isso mesmo um participante da loucura, enquanto só o excêntrico conseguiria aguentar firme e oferecer resistência a absurdidade. Só ele seria capaz de refletir sobre o ilusório do desastre, a irrealidade do desespero, e de se conscientizar não só de que ele ainda vive, mas de que ainda há vida.

Wednesday, March 08, 2006

We accept you, one of us!
O pesadelo estético e o espetáculo do capital.
(Givago Oliveira & Viny Rodrigues)


O anão Hans se apaixona por bela trapezista de circo que, ao saber que ele herdou uma fortuna, planeja, com o amante Hercules, se apossar da sua herança. Fingindo corresponder ao amor de Hans, ela se casa com ele e tenta envenená-lo. Ao saber do plano criminoso, os amigos de Hans, figuras grotescas do circo, os "monstros" do título, decidem vingá-lo. A trama toda ocorre num circo. Desta vez, Browning (que dirigiu o clássico Drácula, com Bela Lugosi), trata do grotesco e do preconceito para com homens e mulheres com aberrações físicas, verdadeiros fenômenos circenses, objeto da curiosidade e pavor do publico. O horror de Freaks é o horror do humano grotesco, da figura aberrante e deformada. Mas o curioso é que, no filme, são tais figuras grotescas que expressam laços de sociabilidade e de valor humanos. Os supostos homens "normais", como a trapezista e seu amante, exemplos de beleza e força física, representam, por outro lado, a degradação de caráter humano, imersos em trapaças e preconceitos contra o diferente e o anormal. Na verdade, no mundo do capital, o normal é que se torna verdadeiramente grotesco. Produzido em 1932, em plena depressão capitalista, com seus milhões de desempregados nos EUA, e no auge do furor fascista na civilizada Europa ocidental, Freaks parece utilizar o grotesco como critica da sociabilidade estranhada do mundo burguês.
Durante as bodas de Hans e Cleopatra, os freaks aceitam a introdução da noiva normal em seu círculo através de um ritual, fazendo passar uma taça de champanhe da qual todos têm de beber misturando suas salivas e gritando: "Uma de nós! Uma de nós!". Contudo, a noiva só lhes tem horror, e os humilha beijando Hercules e não Hans, quebrando a taça que o anão leva de pé sobre a mesa até sua boca: ela abandona a festa gritando todo o nojo que sente daquelas "aberrações". Os freaks começam, então, a suspeitar das intenções casamenteiras de Cleopatra. E quando Hans mostra sintomas de envenenamento, eles passam a vigiar as barracas de Cleopatra e de Hercules, seguindo os passos deles, descobrindo seus planos e preparando uma vingança brutal, desencadeada de maneira assustadora durante uma noite de tempestade.

Se situarmos Freaks na organização social do mundo pós-moderno, podemos interpretá-lo como uma crítica clara ao modo de produção capitalista e ao modo como as relações sociais se desenvolvem nesse espetáculo. Se no mundo capitalista, o qualitativo é substituido pelo quantitativo, e o valor de uso pelo valor de troca, e toda a mediação das relações é feita através do mercado que tudo coisifica. No filme podemos identificar o qualitativo com as aberrações humanas que apesar de suas deformidades, eram os únicos que de alguma forma se relacionavam através do que podemos chamar de "valor de uso humano" ou seja, dando importância ao valor real do outro. Os personagens normais, aqueles sem deformações físicas, seriam o nosso quantitativo, nosso "valor de troca humano", aqueles cujo o ter é mais importante do que o ser, e que a normalidade serve de máscara para a moral torpe e deturpada, são aqueles que coisificam o anão Hans e o transformam apenas em mercadoria para a acumulação de capital. Freaks é uma analogia sobre o mundo invertido que estava em constante construção desde o fim da sociedade feudal. Nada mais inteligente do que situar a história em um circo de horrores, pois o que o desenvolver do capitalismo, até os dias de hoje, nos mostra sua fase mais cruel e ao mesmo tempo sofisticada. O espetáculo no qual a lógica da mercadoria está inserida em quaisquer tipos de relações e a ecônomia se tornou algo auto-suficiente, que rege a nossa vida.
Freaks é sem dúvida um filme atual que deve ser assistido e pensado tanto do ponto de vista natural, quanto do ponto de vista histórico social.

Wednesday, March 01, 2006


Autonomia.
Cartola

É impossível nesta primavera, eu sei.
Impossível, pois longe estarei.
Mas pensando em nosso amor, amor sincero.
Ai! se eu tivesse autonomia.
Se eu pudesse gritaria.
Não vou, não quero.
Escravizaram assim um pobre coração.
É necessário a nova abolição.
Pra trazer de volta a minha liberdade.
Se eu pudesse gritaria, amor.
Se eu pudesse brigaria, amor.
Não vou, não quero.

(Poucos homens entenderam tão bem e de forma tão simples, a cruel realidade do mundo)

Friday, February 10, 2006

Por um materialismo iconoclasta.

Viny:
Nunca entendi direito o que você quer dizer com:
Por um Materialismo Iconoclasta.
O materialismo em si já não é iconoclasta? Só o fato dele ser uma leitura crítica do real, já não o faz iconoclasta?

Cláudio R. Duarte (Militante Imáginário):
Viny,
Minha idéia de iconoclastia, de "destruir imagens", é a de triturar nossos ídolos, tudo que se cristaliza alienadamente em imagem e que se volta fantasmaticamente contra nós mesmos. Mas isso não quer dizer o fim da imaginação. Ao contrário. Na sua cruzada contra o espírito, a especulação, a imaginação, o materialismo foi sempre tributário do que meramente existe (daí por exemplo a "teoria do reflexo" do marxismo, da teoria como pura e perfeita cópia "objetiva" do real). O "realismo socialista", por exemplo, é essa forma de materialismo na estética, que erigiu a realidade existente em dogma a ser respeitado, através da sua cópia ostensiva, onde já não havia lugar para efeitos de estranhamento ou para a criação de um outro mundo. A idéia de um materialismo iconoclasta então seria "dialética", no sentido que almeja "estilhaçar" as imagens do real existente, que residem lá no fundo de nossa mente, em nosso modo de vida burguês, e que nos dão segurança de que esta é a única forma de vida possível. Mas para destruir isso tem de colocar a imaginação num outro patamar, o da procura do possível no interior do existente; não para erigir mundos utópicos, mas para jogar luz sobre a realidade supostamente monolítica e sem alternativas. A idéia do materialismo iconoclasta me veio do livro "Dialética Negativa" de Adorno. Uma das seções do capítulo "Categorias" é chamada precisamente "materialismo sem imagens".

Wednesday, February 01, 2006

Deus deve estar...deixa pra lá.

- Olá, qual o seu nome
- Dani.
- Daniel ou Daniela?
- É óbvio que é Daniela, não está vendo, sou uma menina.
- Mas é sempre bom confirmar né.
- Ok, Ok. Mas me diz, qual o seu nome?
- Carlos e eu sou homem.
- Isso eu já vi e não quero confirmar nada.
- Mas me diz o que você faz da vida?
- Eu estudo e trabalho e você?
- Por enquanto faço cursos. Todo mundo que está desempregado adora dizer que faz cursos. Mas você estuda o que?
- Faço faculdade de artes cênicas.
- E trabalha como atriz?
- Não. Trabalho em uma farmácia.
- Farmácia! Que legal, adoro cheiro de farmácia.
- Hum?
- Acho que na verdade gosto do cheiro de esparadrapo.
- Não vou nem perguntar porque. Você é esquisito.
- Esquisito? Só porque eu estou tentando superar minha timidez excessiva sendo sincero? Eu nunca faço os primeiros movimentos, pois devido a minha timidez, sempre me pego em situações embaraçosas e um tanto traumáticas.
- Nossa! Você tem respostas muito amargas. O que aconteceu, você está nervoso?
- É, na verdade estou um pouco chateado e queria conversar com algum estranho, por isso te abordei.
- Mas o que aconteceu?
- Se eu falar dos meus problemas, você jura que não vai sair correndo?
- Juro.
- Ando brigando muito com a minha familia, por coisas bobas e estou querendo trabalhar, mas tem a merda da fase de exército, essa coisa de reservista sabe? Uma coisa desnecessária na minha opinião. Eu ando pegando ônibus muito lotado, sentando ao lado de pessoas chatas e esta onda de calor em São Paulo me deixou mais suicida que nunca...é isso.
- Mas você precisa ter calma, tudo tem seu tempo.
- É. Já me falaram isso, mas esse tempo nunca chega.
- Você está ansioso?
- Sim, muito. Já até montaram o palco dos Rolling Stones e eu ainda estou aqui...sem grana!
- Mas ansiedade não é uma coisa boa. Você já orou?
- Não! eu parei com isso já faz algum tempo, não acredito mais em Deus sabe, mas se ele existir começo a suspeitar que ele é quem está me provocando.
- Credo! Não fala assim.
- Desculpa se te ofendi.
- Deus é maravilhoso!
- Ah! nisso eu discordo.
- Mas ele conheçe o seu coração.
- Pode ser!
- Ele sabe o que você quer.
- Sabe o que eu quero e manda acontecer o contrário?
- Mas você pode falar com ele até por pensamento.
- Ele lê pensamento? Ah não, to fudido, é por isso então...
- Ele te conheçe.
- Eu sei disso, é assim que ele me provoca. Você é católica?
- Não. Sou evangélica, graças a Deus.
- Ah sim, eu sempre me confundo quem é que não se depila, crente, evangélica, católica...
- E você e de qual religião?
- Se não acredito em Deus, eu sou ateu né dãããã...Mas acho que sou um tipo de ateu místico. Bato na madeira, faço o sinal da cruz, curto Iemanjá e as vezes não corto o cabelo e nem faço a barba.
- Mas nesse caso você coloca Iemanjá como Deus e Jesus Cristo não gosta disso. Ele diz que só ele é Deus.
- Um pouco megalomaníaco esse seu Jesus, você não acha? Mas eu não disse que endeuso ela, eu disse que curto, do mesmo jeito que eu curto Rolling Stones.
- Mas não há outro Deus além dele.
- Não sei. Se existem outros remédios para a dor de cabeça além da Neosaldina na farmácia onde você trabalha, podem existir outros deuses oras!
- Credo!
- Olha, eu gosto da Iemanjá, porque ela tem personalidade, entende? Jesus também tinha, mas ele é homem. Prefiro gostar de mulher.
- Mas quem curte ela, deixa Deus de lado.
- Ah sim, isso é verdade. Mas uma coisa é Iemanjá, toda de azul, bélissima, molhadinha saindo do mar. Outra coisa é Deus, alto, poderoso, nervoso, esbravejando e com cólica.
- Cólica?
- Sim, minha mãe quando está com cólica, acha que é Deus...

(Este diálogo foi inspirado em fatos reais e é dedicado ao meu amigo Mike do adaptations blog)

Monday, January 30, 2006


"Foda-se o rock. Fodam-se os cigarros e o cabelo lambido pra trás que acaba num rabo de cavalo e num preço de entrada alto. Maturidade e progressão não querem dizer música e ideais do status quo. Sob a falsa pretensão de atingir novas audiências, bandas previamente punks nos trazem de volta ao ponto zero, jogando janela afora as fundações de independência que levaram anos pra serem construídas. Esta banda é uma tentativa de reforçar essas fundações que estão rapidamente se erodindo. Talvez esses tipos "roqueiros" não vejam dessa maneira, mas falando como alguém que nunca foi tentado pela subida escorregadia da merda pseudo-preocupada pós-hardcore de código de barras, o senso comum me diz que não importa quantas canções de reggae você escreva sobre direitos humanos, sua audiência ainda vai dar uma "agitada" e beber vinho e cerveja long-neck. Então eles vão voltar pra casa e foder como cachorros e não dar a mínima pra suas melodias politicamente preocupadas pra caramba. O MEIO é A MENSAGEM."
Born Against, foi uma das mais reais bandas punk de todos os tempo.

Monday, January 23, 2006

O que eu procuro não vive mais ai, deve estar do lado de fora.
Viny Blisset

O mais difícil da vida não são as escolhas que temos que fazer, mas sim o modo como somos obrigados a escolher.
Escolhemos sempre as imitações, as mentiras, as representações daquilo que poderíamos ter efetivamente. Escolhemos sem termos opção de escolha, pois, o que difere a escolha A da escolha B são apenas os nossos desejos que infelizmente não temos controle e consciência deles.
O ato de consumir e a pseudo-liberdade imposta pela mercadoria são os mecânismo fundamentais usados pelo sistema das representações, aonde você assisti, compra e se satisfaz com tudo que é falso, pois a troca das mercadorias ou o que chamamos de ecônomia, atingiu uma autônomia na qual ela se reproduz para ela mesma e nós apenas contemplamos essa reprodução e nos limitamos a aceitar aquilo que nos é oferecido. Nós não temos o que queremos, temos apenas o que querem nos dar.
Portanto, a consciência do desejo e o desejo da consciência, são os mesmos projetos que sob a forma negativa quer a abolição da mentira cotidiana, isto é, que os seres humanos tenham a posse direta de todos os momentos de sua atividade.

Thursday, January 05, 2006


A Mentira

Dia 31 de Dezembro de 2005 às 23:50hs, eu sem querer me peguei sentado na areia, olhando o mar e sorrindo. Não era um sorriso de alegria, mas sim um sorriso singelo, confortável e puro. Daqueles que nós nunca damos ou nunca percebemos dar.
O engraçado de tudo isso é que eu nunca fui um admirador do mar, pelo contrário ele sempre me causou pavor. Nunca fui um frequentador assíduo de praias, sempre preferi as grandes construções de arquitetura moderna das metrópoles. Nunca gostei de festas de ano novo e desse falso espírito de renovação, esperança e essa pseudo-segurança compensatória. Sempre encarei e ainda encaro o tal do ano novo como apenas a mudança de um dia para o outro, o resto é invenção humana.
Mas me peguei sorrindo sem saber porque.
Talvez por eu estar ao lado de uma pessoa que eu amo muito, ou talvez por ver como as pessoas em determinadas situações parecem ser boas, ingênuas e puras. Sim eu admito, eu me sentia confortável naquele momento. Essa sensação de que algo me protegia, de que nada de ruim poderia acontecer, fez eu perceber o quanto sou um farsante, um mentiroso.
Cada vez mais eu entendo que a verdade não é o importante. O importante é o que você quer acreditar.

Feliz Pseudo-Ano Novo à todos vocês.