Walter Benjamin analisa a obra de Charles Baudelaire, para nesta tentar localizar as transformações que a modernidade gera nas cidades e consequentemente nos homens, ele se encontra com o flâneur, aquele que perambula pelas ruas, que emerge na multidão de anônimos e vivência a cidade de forma lúdica.
A modernidade trouxe consigo a ordem e moral burguesa, a forma de organização das fábricas, aplicada na vivência das pessoas, na forma como se locomovem e como agem na metrópole. Para Baudelaire neste momento, o artista deveria tornar-se um “Botânico das calçadas”, ou seja, alguém que pudesse aplicar a fisiologia nas metrópoles. Para Benjamin, Baudelaire consegue através de sua obra imergir na cidade e vivenciando de a vida nesta de forma diferenciada, ele se posiciona diante da modernidade. Ele a confronta de forma lírica quando vive o boêmio, o flâneur, o usuário de haxixe, etc. A industrialização da vida tenta também industrializar a poesia e Baudelaire desafia as regras deste jogo social.
A sociedade moderna capitalista é também a sociedade da dicotomia, público/ privado, homem/ cidadão, etc. Para o burguês a casa, o espaço privado, o espaço do homem torna-se um lugar de despolitização, onde a harmonia da decoração deve ser o lugar de refúgio das contradições e da feiúra do mundo lá fora. Mas somente para os burgueses a casa representa o domínio privado por excelência. Para as camadas mais pobres da sociedade urbanas, as moradias coletivas criam uma nova forma de experiência. O constrangimento criado pelo Estado, por considerar estas moradias coletivas lugares anti-higiênicos, faz com que os pobres moradores de cortiços, façam o uso privativo do espaço público e através das barricadas, lutem para redefinir ambos.
A partir da metade do século XIX, o planejamento urbano de paris visando reduzir estes choques e conciliar os interesses do Estado e dos grandes grupos financeiros faz com que Paris se torne uma cidade fragmentada, onde cada região era como pequenos mundos incomunicáveis. A diferenciação entre bairros ricos e pobres levou à expansão da periferia da cidade, assim como a separação entre a residência e o local de trabalho tornou necessária a criação de uma rede de transportes capaz de garantir a circulação regular entre uma zona da cidade e outra.
E é neste momento que Baudelaire nos mostra o flâneur, o vagabundo errante, sobrepõe o ócio ao “lazer”, é aquele que se contrapõe a vida como um modo de produção serial, a esquizofrenizante divisão do espaço moderno, desafiando a divisão do trabalho. Ele não existe sem a multidão, mas não se confunde com ela. Ele caminha no meio da multidão e o efeito narcotizante que esta exerce sobre flâneur, é o mesmo que a mercadoria exerce sobre a multidão.
Na década de 50 do século XX, um grupo de intelectuais, artistas e agitadores franceses, conhecidos pelo nome de Internacional Situacionista liderados pelo “doutor em nada” Guy-Ernest Debord, descontentes com o modo de vida e de consumo da sociedade mercantil espetacular, imposta pelo capitalismo moderno, perceberam que o novo urbanismo que reconfigurou a as metrópoles francesas, haviam transformado a vida social em espetáculo, onde os agentes sociais não passavam de espectadores de suas próprias vidas. Toda a participação social havia sido destruída pelo capital e a mercadoria era o único sujeito real desta ordem. Perceberam portanto que a cidade deveria ser recriada conforme a situação gerada no momento, ou ainda, a situação construída designava um “momento da vida, construído concreta e intencionalmente para a organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de acontecimentos” (JACQUES, 2003).
Criaram, portanto a técnica ou o método experimental chamado de Deriva, que visa re-conhecer ou redescobrir a cidade desconstruindo as formas culturais tradicionais e impregnadas de pré-concepções, se utilizando de um caminhar sem direção ou rumo pré-definido.
“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve se tornar apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos (...) Entre os diversos procedimentos situacionistas, a Deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio” (DEBORD, 1958).
Conforme o descrito acima, podemos encontrar semelhanças latentes entre o flânerie e a Deriva, pois ambos se contrapõem ao modo de vida hegemônica do capitalismo, a transformação do tempo-livre em tempo-lazer mediado pela mercadoria, e valorizam a criação de novos jogos, novas situações (por isso o nome situacionistas), que priorizem a participação social. Tanto o vagabundo consciente encontrado por Walter Benjamin na obra de Baudelaire, quanto o vivenciador e criador de novas situações dos situacionistas se posicionam diante da modernidade de forma crítica. E tentam através de um novo olhar em relação a cidade, agir no mundo de forma lúdica e ativa e não contemplá-lo passivamente, e para isso se faz necessário criar novos jogos.
Bibliografia.
BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo” in: Obras Escolhidas volume III. Ed. Brasiliense.
JACQUES, Berenstein Paola. Apologia da Deriva. Escritos situaconistas sobre a cidade. Ed. Casa da Palavra, rio de janeiro, 2003.